terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A ÁGUA MIRACULOSA

 

A Taça do Intendente - Largo do Intendente - Lisboa

HISTÓRIAS DE ANTANHO

(História número 4)


Introdução Permanente


No período compreendido entre 1945 e 1968 a cidade de Lisboa era bem diferente dos tempos de agora.


A relativamente pouca distância do centro da cidade de Lisboa, ficava o Martim Moniz, bem diferente do atual e a partir do qual se iniciava a Rua da Palma, logo continuada pela Avenida Almirante Reis, paralela à Rua do Benformoso que, por sua vez, terminava no Largo do Intendente, onde começava a Rua dos Anjos que atravessava a Avenida Almirante Reis e terminava no Largo de Santa Bárbara.


Este era o espaço (onde vivi) e as HISTÓRIAS DE ANTANHO se irão essencialmente localizar e a partir do qual outros espaços irão ser referidos no contexto de um ambiente humano muito peculiar.


A ÁGUA MIRACULOSA



Associação do Registo Civil - Largo do Intendente - Lisboa

Nos tempos de antanho o "LARGO DO INTENDENTE", situado entre o fim da Rua da Palma e o início da Avenida Almirante Reis proliferava de vida. Vendedoras de hortaliça e de peixe e de outros produtos; carros, caminhetas, burros, cavalos; moços de fretes, propagandistas da “banha da cobra”. Por ali havia fábricas, olarias, palácios e até um liceu. Uma azáfama que começava de madrugada e se prolongava noite dentro. De fábricas ainda lá está o edifício da Viúva Lamego. As olarias desapareceram, contudo, em 1955, existia uma já fora do Largo, junto do Hospital do Desterro.


No Largo do Intendente é historicamente importante referir a existência da “Associação do Registo Civil”, fundada pela Maçonaria, em 5 de Agosto de 1895, porque de entre os milhares de associados se contavam Manuel dos Reis Buíça e Alfredo Luís da Costa, a quem a História consignaria o epíteto de regicidas.


    
 
Palácio do Intendente Pina Manique - Largo do Intendente - Lisboa

Eram notáveis os dois palácios que se localizavam no Largo: o Palácio da Viscondessa da Graça e o Palácio de D. Diogo Inácio Pina de Manique, Intendente Geral da Polícia, que por ali residir deu o nome ao local: Largo do Intendente.


 
Chafariz do Intendente
Localização inicial (Largo Intendente) Localização actual (Calçada do Desterro)

Já o Chafariz do Intendente, abastecido por uma galeria que saía do Aqueduto das Águas Livres, também localizado no Largo do Intendente, junto à Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego é, posteriormente, transferido para a confluência da Rua da Palma com a Avenida Almirante Reis, mesmo na esquina com a Calçada do Desterro onde ainda se encontra.


Bebedouro do Intendente - Largo do Intendente - Lisboa

Um bebedouro (personagem central desta história) que servia para os animais (cavalos, mulas e burros) se dessedentarem e que era também conhecido como “Taça do Intendente” devido à sua forma, encontrava-se (e encontra-se) quase no centro do Largo e a pouca distância da Rua do Benformoso.


Bebedouro do Intendente (Pormenor) - Largo do Intendente - Lisboa

No centro desse bebedouro brotava um jorro de água sulfatada cálcica que mantinha permanentemente o receptáculo cheio sendo o excesso expelido por uns orifícios gradeados colocados na periferia da taça.


Bebedouro do Intendente (A Taça) - Largo do Intendente - Lisboa

Esta água tinha fama de curar problemas de estômago, fígado, rins, bexiga e facilitar as digestões o que não era clinicamente comprovado. Contudo, ao entardecer e nas noites quentes de verão viam-se mulheres, acompanhadas pelos maridos, irmãos ou filhos, a encher garrafões com aquela “água miraculosa”. Para o efeito formavam-se bichas (vocábulo que prefiro a filas) com dezenas de pessoas aguardando, com algumas discussões pelo meio, o acesso à água. Para obter a água usavam-se canas cortadas ao meio (posteriormente substituídas por artefactos metálicos) que eram colocadas desde o centro do bebedouro onde a água brotava até à periferia da taça permitindo assim recolher, facilmente e sem esforço, a água para os garrafões.


Imagem fictícia da minha tia e de mim criada com a "Inteligência Artificial"

Uma tia minha, que eu em criança acompanhava à “água do Intendente”, “odiava” aquele trabalho que a fazia deslocar-se desde quase o Largo de Santa Bárbara até ao Largo do Intendente (cerca de 1 quilómetro) e regressar com o peso de dois garrafões de 5 litros cada (cerca de 10 quilos) cheios daquela “água miraculosa” para satisfação do meu avô. Um trabalho que executava 2 e às vezes 3 vezes, por semana.


Até que um dia…


Nessa noite chovia. E lá fui eu mais uma vez com a minha tia a caminho do Largo do Intendente. No entanto, dessa vez, a primeira de muitas, a rotina foi alterada. Mal saímos de casa a minha tia, ao invés de prosseguir na direcção do objectivo, entrou na leitaria da esquina (que hoje chama-se café), cujo proprietário nos conhecia e pediu para encher os garrafões com água da torneira. Pedido satisfeito. Aguardámos algum tempo, uma meia hora e depois regressámos a casa.


Nessa semana e noutras que se seguiram, não todas, a cena repetiu-se. O meu avô regozijava-se clamando que a água lhe fazia cada vez melhor. E eu, contentíssimo da vida, “rezava a todos os santinhos” para que o meu avô só bebesse da “água del cano” porque, nesses dias, tinha sempre direito a um rebuçado na leitaria da esquina.


Alguns anos mais tarde a ida à “água do Intendente” acabou, talvez porque aquela “água miraculosa” já não parecesse fazer efeito, ou porque a minha tia se recusasse a continuar a servir de aguadeira do pai ou por qualquer outra razão.


Mais tarde, em data que não posso precisar, por razões sanitárias, a Câmara Municipal de Lisboa desactivou a “Taça do Intendente” cuja “água miraculosa” muita gente acreditou ter sido a cura para as respectivas maleitas.


Aquela foi uma época em que as crendices proliferavam, os conhecimentos sanitários eram quase nulos entre a população, o acesso aos médicos era difícil porque eram caros (não havia Serviço Nacional de Saúde) e que as mezinhas (como a “água do Intendente”) eram a solução possível e à “mão de semear”.

Para mim foi uma boa época: nunca chupei tantos rebuçados! 



 
LEIA TAMBÉM (Clique no título):

COMO O MEU AVÔ SALVOU UM HOMEM (E depois se arrependeu?)

- O XÉ-XÉ

- A MULHER DA BANHA DA COBRA



CRÉDITOS:

01ª Foto – Autor: Arnaldo Madureira no espaço “AML”

02ª Foto – Autor: Joshua Benoliel no espaço “AML”

03ª Foto – Autor: Desconhecido no espaço “Cidadanialx”

04ª Foto – Autor: Desconhecido no espaço “Cidadanialx”

05ª Foto – Autor: José Arthur Bárcia no espaço Arquivo Fotográfico da “CML”

06ª Foto – Autor: Eduardo Portugal no espaço “AML”

07ª Foto – Autor: Desconhecido no espaço “As fontes da Minha vida”

08ª Foto – Autor: Desconhecido no espaço “As fontes da Minha vida”

09ª Foto – Autor: Inteligência Artificial

10ª Foto – Autor: Desconhecido no espaço “Casa Januário”





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