terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

COMO O MEU AVÔ SALVOU UM HOMEM (E depois se arrependeu?)

Regueirão dos Anjos
Foto tomada da Avenida Almirante Reis
1951


HISTÓRIAS DE ANTANHO

(História número 1)


Introdução Permanente


No período compreendido entre 1945 e 1968 a cidade de Lisboa era bem diferente dos tempos de agora.


A relativamente pouca distância do centro da cidade de Lisboa, ficava o Martim Moniz, bem diferente do atual e a partir do qual se iniciava a Rua da Palma, logo continuada pela Avenida Almirante Reis, paralela à Rua do Benformoso que, por sua vez, terminava no Largo do Intendente, onde começava a Rua dos Anjos que atravessava a Avenida Almirante Reis e terminava no Largo de Santa Bárbara.


Este era o espaço (onde vivi) e as HISTÓRIAS DE ANTANHO se irão essencialmente localizar e a partir do qual outros espaços irão ser referidos no contexto de um ambiente humano muito peculiar numa cidade como então era Lisboa.



COMO O MEU AVÔ SALVOU UM HOMEM

(E depois se arrependeu?)


O local do salvamento



Regueirão dos Anjos
Um dos arcos sobre o qual passa a Rua Álvaro Coutinho


O Regueirão dos Anjos é uma rua no seu início paralela à Rua dos Anjos que começa na Avenida Almirante Reis, passa sob 3 arcos, prossegue paralela à Rua de Arroios e termina na Rua Frei Francisco Foreiro.


Os terrenos de Arroios ficaram marcados pela ribeira de Arroios (ou regueiro dos Anjos), divididos pela colina de Santana, com solos férteis de hortas, prados, olivais e vinha. A Igreja Paroquial de Nossa Senhora dos Anjos, demolida após janeiro de 1908, situava-se num local sem movimento, tinha à esquerda da fachada um arco, que se encostava a um modesto prédio burguês. Nesse arco, estava a boca do Regueiro dos Anjos. Tudo foi demolido para a abertura da Avenida D. Amélia. Com as obras, a boca do Regueirão dos Anjos ficou abaixo do nível da antiga Avenida D. Amélia, a atual Avenida Almirante Reis. (in Junta de Freguesia de Arroios)



Regueirão dos Anjos
Ao fundo outro dos três arcos sobre o qual passa a Rua Febo Moniz


Nesse tempo de 1945 / 1950 o Regueirão dos Anjos fervilhava de atividades diversas. Desde um Canteiro (onde se trabalhavam mecanicamente grandes placas de pedras), uma Marcenaria (local de manufacturação e recuperação de móveis antigos para os quais o meu avô paterno já com uns 70 anos era frequentes vezes chamado a intervir), um Trapeiro (assim chamado por comprar e vender trapos, mas essencialmente por acumular papel que depois seguia em grandes camiões para fábricas onde era transformado em pasta de papel ou seja reciclado), uma enorme Vidraria (que semanalmente recebia enormes chapas de vidro transportadas em carroças puxadas por cavalos) e uma Serralharia (de grandes dimensões). Além da indústria referida havia ainda muitas outras pequenas oficinas e até uma Tasca (melhor dizendo, uma taberna onde se vendia vinho, petróleo, carvão e refeições muito simples).


O Regueirão dos Anjos fica pois no exato local por onde passava a Ribeira de Arroios e que foi ocupada por construções o que, em tempo de chuvas intensas, as águas seguiam para essa linha de água provocando grandes inundações.


O acidente

Essas grandes enxurradas no Regueiro dos Anos tinham o seu apogeu normalmente junto à Avenida Almirante Reis e como o Regueirão dos Anjos ficava a um nível inferior à Avenida as águas não se escoavam, formavam um autêntico lago com mais de dois metros de profundidade e subiam, por isso, à altura das portas das oficinas ou ainda mais.


Num determinado dia choveu e começaram-se a ouvir os habituais gritos de alerta: “Vem aí a água! Vem aí a água! Vem aí a cheia!


Apressadamente as portas de ferro começavam a fechar-se e os trabalhadores (e não só) abandonavam as lojas e as oficinas. Havia, no entanto o hábito (mau) de em algumas oficinas fecharem as portas e continuarem a trabalhar no interior. De referir que eram locais que não tinham outra saída que não fosse aquelas portas que ficavam, por vezes, cobertas de água.


Uma das oficinas de Canteiro ficava por debaixo da casa onde o meu avô morava e um dos trabalhadores (seria o proprietário?), não obstante o meu avô, que conhecia a intensidade das enxurradas pela experiência que lhe vinha de se aperceber das consequências da força das chuvas, o aconselhar veementemente a sair, decidiu ficar a trabalhar no interior.


E a água veio e começou a subir e o lago foi-se formando e a pressão da água foi aumentando e a porta de ferro onde no interior o homem trabalhava cedeu parcialmente e a água penetrou na oficina e foi subindo também no interior à medida que subia no exterior.


Regueirão dos Anjos 
Na imagem vê-se a porta que cedeu sob a janela onde 4 pessoas olham a cheia
1949


Na casa do meu avô, vindo do chão, começaram a ouvir os gritos desesperadamente aflitivos do homem implorando que o salvassem.


O homem ia morrer afogado se a água continuasse a subir como tudo parecia indicar. Não havia escapatória, pois a porta tinha cedido o suficiente para que a água entrasse, mas não o suficiente para permitir a saída de uma pessoa, mesmo que nadando debaixo de água.


O salvamento

Os gritos continuavam cada vez mais desesperados. O homem tinha consciência que ia morrer afogado.


O meu avô era um homem alto e de uma enorme força. Aquilo a que deitasse mão já não largava. Talvez devido à sua profissão (não sei!) tinha na sua casa uma marreta e decidiu usá-la para rebentar o chão da sua casa, abrir um buraco e fazer sair por aí o homem. Isto também só foi possível porque os andares não eram separados por placas de cimento armado.


Com grande esforço o meu avô rebentou o chão, criou um buraco suficientemente largo para retirar o homem. Segundo o meu pai o homem já só tinha a cabeça fora de água e a água continuava a subir. Quando o puxaram viram que o homem estava branco como a cal e que ficou mudo e quedo por muitas horas.


A minha avó deu a beber ao homem uma chávena de chá. (Naquela casa o chá era bebida de eleição por motivos que mais tarde poderei, se para tanto tiver oportunidade, explicar).


E as águas acabaram por descer engolidas lentamente pelo esgoto e o homem foi à sua vida.


A recompensa

O meu avô não era, nunca foi, um homem rico. Era pobre. Vivia exclusivamente do seu trabalho de Marceneiro. A minha avó só trabalhava em casa nas lides domésticas. Tinham criado 5 filhos e quando isto sucedeu apenas 2 filhas, já adultas, viviam com eles. Não era pois fácil dispor de dinheiro para tapar o buraco feito para salvar de morte certa daquele homem.


Quinze dias depois do salvamento o homem continuava a trabalhar como se nada fosse e não dirigia palavra ao meu avô, como se nada se houvesse passado. O meu avô via-o todos os dias pelo buraco que tinha feito para o salvar e que continuava aberto, bem no meio da cozinha. Então, o meu avô, um pouco pressionado pela mulher e muito pelos filhos, decidiu ir falar com o homem.


A conversa do meu avô com o homem teria sido mais ou menos assim:


O meu avô - Meu caro senhor eu peço desculpa de o incomodar, mas venho pedir-lhe para me ajudar com alguma coisa nas despesas para tapar o buraco. Já passaram quinze dias e...


O homem - Ajudar com quê? A casa não é minha!


O meu avô - Sim… Mas… Eu fiz o buraco por sua causa. Para o salvar.


O homem - Fez o buraco porque quis. Eu não lhe pedi nada.


A conversa terminou, o meu avô tapou o buraco a expensas próprias, nunca mais falou ao homem e nunca mais falou do assunto.


O meu avô não queria uma recompensa por ter salvo a vida daquele homem. Queria apenas uma ajuda. Não sei, porque nunca perguntei ao meu avô, se a sua crença no ser humano tinha sido abalada e se, em situação semelhante, voltaria a sacrificar o seu parco património para salvar outro homem.


CRÉDITOS:

1ª Foto – Autoria de Eduardo Portugal em “Lisboa de Antigamente”.

2ª Foto – Autor desconhecido e obtida no espaço da J. F. de Arroios.

3ª Foto – Autor desconhecido e obtida no espaço da J. F. De Arroios.

4ª Foto - Autoria de Eduardo Portugal em “Lisboa de Antigamente”.




2 comentários:

  1. Embora o meu caro amigo já me tivesse contado esta história, foi com grande prazer que a pude relembrar na forma escrita, o que só a valoriza. Certamente outras virão para deleite de quem as lê.

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  2. Ingratidão. Má formação. Presente em mais pessoas do que supomos.
    Obrigada

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