BAGÃO FÉLIX
Economista, ex-ministro das Finanças
Não é uma individualidade conotada com a esquerda
portuguesa, antes pelo contrário, que diz:
“No Governo há
“assessores de aviário”, jovens promissores de 20 e poucos anos a vencer 3.000€
mensais. Expliquem-nos a razão por que um pensionista paga CES e IRS e estes
jovens só pagam IRS! Ética social da austeridade?”
Talvez por isso seja necessário reflectir sobre o seguinte
texto:
Falácias e mentiras sobre
pensões
A ideologia punitiva sobre os mais velhos prossegue entre um
muro de indiferença, um biombo de manipulação, uma ausência de reflexão
colectiva e uma tecnocracia gélida.
Escreveu Jean Cocteau: “Uma garrafa de vinho meio vazia está
meio cheia. Mas uma meia mentira nunca será uma meia verdade”. Veio-me à
memória esta frase a propósito das meias mentiras e falácias que o tema pensões
alimenta. Eis (apenas) algumas:
1. “As pensões e
salários pagos pelo Estado ultrapassam os 70% da despesa pública, logo é aí que
se tem que cortar”. O número está, desde logo, errado: são 42,2% (OE 2014).
Quanto às pensões, quem assim faz as contas esquece-se que ao seu valor bruto
há que descontar a parte das contribuições que só existem por causa
daquelas. Ou seja, em vez de quase 24.000 M€ de pensões pagas (CGA + SS) há que
abater a parte que financia a sua componente contributiva (cerca de 2/3 da
TSU). Assim sendo, o valor que sobra representa 8,1% da despesa das
Administrações Públicas.
2. Ou seja, nada
de diferente do que o Estado faz quando transforma as SCUT em auto-estradas com
portagens, ao deduzi-las ao seu custo futuro. Como à despesa bruta das
universidades se devem deduzir as propinas. E tantos outros casos…
3. Curiosamente
ninguém fala do que aconteceu antes: quando entravam mais contribuições do que
se pagava em pensões. Aí o Estado não se queixava de aproveitar fundos para
cobrir outros défices.
4. Outra falácia:
“o sistema público de pensões é insustentável”. Verdade seja dita que esse
risco é cada vez mais consequência do efeito duplo do desemprego (menos
pagadores/mais recebedores) e - muito menos do que se pensa - da demografia, em
parte já compensada pelo aumento gradual da idade de reforma (f. de
sustentabilidade). Mas porque é que tantos “sábios de ouvido” falam da
insustentabilidade das pensões públicas e nada dizem sobre a insustentabilidade
da saúde ou da educação também pelas mesmas razões económicas e demográficas?
Ou das rodovias? Ou do sistema de justiça? Ou das Forças Armadas? Etc. Será que
só para as pensões o pagador dos défices tem que ser o seu pseudo “causador”,
quase numa generalização do princípio do poluidor/pagador?
5. “A CES não é
um imposto”, dizem. Então façam o favor de explicar o que é? Basta de logro
intelectual. E de “inovações” pelas quais a CES (imagine-se!) é considerada em
contabilidade nacional como “dedução a prestações sociais” (p. 38 da Síntese de
Execução Orçamental de Novembro, DGO).
6. “95% dos
pensionistas da SS escapam à CES”, diz-se com cândido rubor social. Nem se dá
conta que é pela pior razão, ou seja por 90% das pensões estarem abaixo dos 500
€. Seria, como num país de 50% de pobres, dizer que muita gente é poupada aos
impostos. Os pobres agradecem tal desvelo.
7. A CES, além de
um imposto duplo sobre o rendimento, trata de igual modo pensões contributivas
e pensões-bónus sem base de descontos, não diferencia careiras longas e nem
sequer distingue idades (diminuindo o agravamento para os mais velhos) como até
o fazia a convergência (chumbada) das pensões da CGA.
8. “As pensões
podem ser cortadas”, sentenciam os mais afoitos. Então o crédito dos detentores
da dívida pública é intocável e os créditos dos reformados podem ser sujeitos a
todas as arbitrariedades?
9. “Os
pensionistas têm tido menos cortes do que os outros”. Além da CES, ter-se-ão
esquecido do seu (maior) aumento do IRS por fortíssima redução da dedução
específica?
10. Caminhamos a
passos largos para a versão refundida e dissimulada do famigerado aumento de 7%
na TSU por troca com a descida da TSU das empresas. Do lado dos custos já está
praticamente esgotado o mesmo efeito por via laboral e pensional, do lado dos
proveitos o IRC foi já um passo significativo.
11. Com os dados
com que o Governo informou o país sobre a “calibrada” CES, as contas são
simples de fazer. O buraco era de 388 M€. Descontado o montante previsto para a
ADSE, ficam por compensar 228 M€ através da CES. Considerando um valor médio de
pensão dos novos atingidos (1175€ brutos), chegamos a um valor de 63 M€ tendo
em conta o número – 140.000 pessoas - que o Governo indicou (parece-me
inflacionado…). Mesmo juntando mais alguns milhões de receitas por via do
agravamento dos escalões para as pensões mais elevadas, dificilmente se
ultrapassam os 80 M€. Faltam 148 M, quase 0,1% do PIB (dos 0,25% que o Governo
entendeu não renegociar com a troika, lembram-se?). Milagre?
“Descalibração”? Só para troika ver?
12. A apelidada
“TSU dos pensionistas” prevista na carta que o PM enviou a Barroso, Draghi e
Lagarde em 3/5/13 e que tinha o nome de “contribuição de sustentabilidade do
sistema de pensões” valia 436 M€. Ora a CES terá rendido no ano que acabou
cerca de 530 M€. Se acrescentarmos o que ora foi anunciado, chegaremos, em
2014, a mais de 600 M€ de CES. Afinal não nos estamos a aproximar da “TSU dos
pensionistas”, mas a … afastarmo-nos. Já vai em mais 40%!
13. A ideologia
punitiva sobre os mais velhos prossegue entre um muro de indiferença, um biombo
de manipulação, uma ausência de reflexão colectiva e uma tecnocracia gélida.
Neste momento, comparo o fácies da ministra das Finanças a anunciar estes
agravamentos e as lágrimas incontidas da ministra dos Assuntos Sociais do
Governo Monti em Itália quando se viu forçada a anunciar cortes sociais. A
política, mesmo que dolorosa, também precisa de ter uma perspectiva afectiva
para os atingidos. Já agora onde pára o ministro das pensões?
P.S. Uma
nota de ironia simbólica (admito que demagógica): no Governo há “assessores de
aviário”, jovens promissores de 20 e poucos anos a vencer 3.000€ mensais.
Expliquem-nos a razão por que um pensionista paga CES e IRS e estes jovens só
pagam IRS! Ética social da austeridade?
BAGÃO FÉLIX
Economista, ex-ministro das Finanças
Publicado no Jornal “= Público” em 13 de janeiro de 2014
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