quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

“DEUS LHE PAGUE”



DEUS LHE PAGUE

O natal passou.

E a (des)propósito vou contar a história (não se esqueçam que é ficção) de um barco de pesca, o “Deus lhe pague”.

O “Deus lhe pague” era um barco muito especial. Ninguém sabia ao certo de onde viera e parecia não precisar de manutenção. Existia simplesmente.

Navegavam no “Deus lhe pague” 10 homens: O dono do barco, 2 chefes que eram simultaneamente representantes do dono do barco e 7 trabalhadores indiferenciados.

A cada 5 dias o “Deus lhe pague” capturava exactamente 100 sardinhas que eram distribuídas da seguinte forma:


Uma vez por ano, no natal, o dono do barco, retirando das respectivas economias (que eram de cerca de 3285 sardinhas por ano), dava umas 100 sardinhas a cada uma das chefias e umas 15 a cada um dos trabalhadores, o que representava uns 10% do total das economias anuais.

Este tipo de distribuição, mas em percentagem menor, era, por vezes, feita mais uma ou mesmo mais duas vezes por ano, sempre em ocasiões em que o “Deus lhe pague”, o nome do barco da nossa história, pudesse ser publicamente referido como imbuído de um verdadeiro espirito de solidariedade com os mais desfavorecidos.

Evidentemente que os mais desfavorecidos continuavam mais desfavorecidos e estas acções impropriamente chamadas solidárias, além de os não dignificarem, não contribuíam para modificarem o estatuto social em que, infelizmente, se encontravam. E não contribuem para alterar o status quo das pessoas porque as mesmas são de natureza caritativa. São acções de caridade.

A grande, a enorme diferença entre caridade e solidariedade assenta na atitude que se tem na prestação de uma ajuda imediata (que é caridade) sem que de alguma forma desenvolvamos esforços para transformar a situação do carente (que é solidariedade).

Praticarei a caridade (e talvez fique de bem com a minha consciência) ao dar a um pedinte uma moeda sem me voltar a preocupar com o problema e sem que com a minha acção caritativa altere a vida daquela pessoa.

Serei solidário se, para além da moeda, como forma de resolução imediata de um problema, desenvolver todos os esforços ao meu alcance para modificar a situação de carência, por forma a não ser de novo abordado e ter de, de novo, praticar caridade.

A moeda que dou (que antigamente se chamava esmola) apresenta-se agora em novas formas: nos sacos de alimentos que nos pedem nos supermercados, nas cantinas sociais (neologismo que substituiu a antiga “sopa do Sidónio” ou noutras quaisquer formas de caridade).

Não afirmo, longe de mim, que a caridade não é importante para impedir no imediato danos maiores. Mas chamemos-lhe exactamente isso: caridade. Não sublimemos a acção esmoler (caridade), que não altera a situação de carência e mantem a supremacia de quem dá e a dependência de quem recebe por necessidade.

O dono do “Deus lhe pague”, o barco da nossa história, tem uma mais-valia de cerca de 3285 sardinhas por ano, para além das que consome, para seu sustento; as chefias do “Deus lhe pague” têm o sustento necessário, sem qualquer hipótese de economizar, excepto quando o dono do barco, se eles se portarem bem, lhes dá aqueles “presentes” anuais; mas os trabalhadores, esses passam fome, mesmo com aqueles "presentes" anuais. E o "Deus lhe pague" não tem capacidade para aumentar a produção.

Como alterar a situação dos trabalhadores do “Deus lhe pague”? Como impedir que passem fome? Como ser solidários com eles?

A resposta parece simples: Aumentando a percentagem de sardinhas atribuídas aos trabalhadores e diminuindo a percentagem do dono do barco.

Lutar ao lado dos que precisam para que a distribuição da riqueza seja mais justa (não necessariamente igualitária) é um verdadeiro acto de solidariedade (não de caridade) porque tem como objectivo alterar o estado de pobreza de pessoas.

A não ser que a nossa política se limite à caridade.


(O autor, todas as Quintas-feiras, no Blogue do Papa Léguas Portugal, emite uma opinião sobre assuntos relacionados com o autocaravanismo (e não só) – AQUI)


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