“DEUS LHE PAGUE”
O natal passou.
E a (des)propósito vou contar a história (não se esqueçam que é ficção) de um
barco de pesca, o “Deus lhe pague”.
O “Deus lhe pague” era um barco muito especial. Ninguém
sabia ao certo de onde viera e parecia não precisar de manutenção. Existia
simplesmente.
Navegavam no “Deus lhe pague” 10 homens: O dono do barco, 2 chefes
que eram simultaneamente representantes do dono do barco e 7 trabalhadores
indiferenciados.
A cada 5 dias o “Deus lhe pague” capturava exactamente 100
sardinhas que eram distribuídas da seguinte forma:
Uma vez por ano, no natal, o dono do barco, retirando das
respectivas economias (que eram de cerca de 3285 sardinhas por ano), dava umas
100 sardinhas a cada uma das chefias e umas 15 a cada um dos trabalhadores, o
que representava uns 10% do total das economias anuais.
Este tipo de distribuição, mas em percentagem menor, era,
por vezes, feita mais uma ou mesmo mais duas vezes por ano, sempre em ocasiões
em que o “Deus lhe pague”, o nome do barco da nossa história, pudesse ser
publicamente referido como imbuído de um verdadeiro espirito de solidariedade
com os mais desfavorecidos.
Evidentemente que os mais desfavorecidos continuavam mais
desfavorecidos e estas acções impropriamente chamadas solidárias, além de os
não dignificarem, não contribuíam para modificarem o estatuto social em que,
infelizmente, se encontravam. E não contribuem para alterar o status quo das pessoas porque as
mesmas são de natureza caritativa. São acções de caridade.
A grande, a enorme
diferença entre caridade e solidariedade assenta na atitude que se tem na
prestação de uma ajuda imediata (que é caridade) sem que de alguma forma
desenvolvamos esforços para transformar a situação do carente (que é
solidariedade).
Praticarei a
caridade (e talvez fique de bem com a minha consciência) ao dar a um pedinte
uma moeda sem me voltar a preocupar com o problema e sem que com a minha acção
caritativa altere a vida daquela pessoa.
Serei solidário se,
para além da moeda, como forma de resolução imediata de um problema,
desenvolver todos os esforços ao meu alcance para modificar a situação de
carência, por forma a não ser de novo abordado e ter de, de novo, praticar
caridade.
A moeda que dou (que
antigamente se chamava esmola) apresenta-se agora em novas formas: nos sacos de
alimentos que nos pedem nos supermercados, nas cantinas sociais (neologismo que
substituiu a antiga “sopa do Sidónio” ou noutras quaisquer formas de caridade).
Não afirmo, longe de
mim, que a caridade não é importante para impedir no imediato danos maiores.
Mas chamemos-lhe exactamente isso: caridade. Não sublimemos a acção esmoler (caridade),
que não altera a situação de carência e mantem a supremacia de quem dá e a
dependência de quem recebe por necessidade.
O dono do “Deus lhe
pague”, o barco da nossa história, tem uma mais-valia de cerca de 3285
sardinhas por ano, para além das que consome, para seu sustento; as chefias do
“Deus lhe pague” têm o sustento necessário, sem qualquer hipótese de
economizar, excepto quando o dono do barco, se eles se portarem bem, lhes dá
aqueles “presentes” anuais; mas os trabalhadores, esses passam fome, mesmo com
aqueles "presentes" anuais. E o "Deus lhe pague" não tem capacidade para aumentar a produção.
Como alterar a
situação dos trabalhadores do “Deus lhe pague”? Como impedir que passem fome?
Como ser solidários com eles?
A resposta parece
simples: Aumentando a percentagem de sardinhas atribuídas aos trabalhadores e
diminuindo a percentagem do dono do barco.
Lutar ao lado dos
que precisam para que a distribuição da riqueza seja mais justa (não
necessariamente igualitária) é um verdadeiro acto de solidariedade (não de caridade) porque tem
como objectivo alterar o estado de pobreza de pessoas.
A não ser que a nossa
política se limite à caridade.
(O autor, todas as Quintas-feiras, no Blogue do Papa Léguas Portugal, emite uma opinião sobre assuntos relacionados com o autocaravanismo (e não só) – AQUI)
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