sábado, 7 de outubro de 2023

COISAS DO… ZECA (19)

 


COISAS DO… ZECA


Menina dos olhos tristes (1969)

Os seus discos não passavam na rádio nem na televisão, nem sequer no Zip-Zip, que no ténue degelo da Primavera marcelista rompia vagamente na RTP o bloqueio da herança salazarista para nos deixar pela primeira vez ouvir as vozes de Fanhais e de Manuel Freire. Mas cada novo disco seu que saía chegava-nos através dos irmãos e dos amigos mais velhos, por vezes com recomendações de cuidado, porque – diziam-nos – "está proibido". Ouvi-lo era para nós a sensação de entrar numa aventura fascinante, que nos unia num gesto necessariamente juvenil e ingénuo mas nem por isso menos convicto de ruptura, de rejeição da estupidez da ordem vigente, de certeza de que era possível outra realidade em que os nossos sonhos e os nossos ideais poderiam tomar corpo. O Zeca, mesmo sendo da idade dos nossos pais, era um de nós, era a nossa voz, como uma espécie de Peter Pan que se recusara a envelhecer e que conquistara pelo seu génio de criador e pela coragem da sua postura cívica a juventude eterna dos grandes ideais. Aprendíamos de cor as letras e as músicas. A menina dos olhos tristes que chorava porque «o soldadinho não volta do outro lado do mar» era a imagem perfeita da nossa própria angústia naquele universo de jovens que víamos partirem todos os dias para a guerra e não regressarem, num destino que sabíamos poder em breve vir também a ser o nosso. A brutalidade estúpida dos filmes cortados e dos livros proibidos, de que nos apercebíamos como a imagem quotidiana mais imediata da censura, despertava-nos anseios de liberdade de pensamento que o Zeca mais uma vez expressava como ninguém: "Vejam bem que não há só gaivotas em terra quando um homem se põe a pensar".”

Rui Vieira Nery

MUSICÓLOGO

FONTE: Associação José Afonso (Ver AQUI)


Menina dos olhos tristes


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