DEFESA DO POETA
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e
ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que favor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
"Compus este poema para me defender no
Tribunal Plenário de tenebrosa memória. O que não fiz a pedido do meu advogado
que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do
julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença."
(Natália Correia – 1923-1993)
Natália de Oliveira Correia (Fajã
de Baixo, São Miguel, 13 de
Setembro de 1923 — Lisboa, 16 de
Março de 1993 )
foi uma intelectual, poeta (a própria recusava ser classificada como poetisa
por entender que a poesia era assexuada) e activista social açoriana,
autora de extensa e variada obra publicada, com predominância para a poesia. Deputada à Assembleia da República (1980-1991),
interveio politicamente ao nível da cultura e do património, na defesa dos
direitos humanos e dos direitos das mulheres. Autora da letra do Hino
dos Açores. Juntamente com José
Saramago (Prémio Nobel de Literatura, 1998), Armindo Magalhães, Manuel
da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em
1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC).
A obra de Natália Correia estende-se por géneros variados,
desde a poesia ao romance, teatro e ensaio. Colaborou com frequência em
diversas publicações portuguesas e estrangeiras. Foi uma figura central das
tertúlias que reuniam em Lisboa nomes centrais da cultura e da literatura
portuguesas nas décadas de 1950 e 1960. Ficou conhecida pela sua personalidade
livre de convenções sociais, vigorosa e polémica, que se reflecte na sua
escrita. A sua obra está traduzida em várias línguas.
Quando tinha apenas onze anos o pai emigra para
o Brasil,
fixando-se Natália com a mãe e a irmã em Lisboa, cidade onde
faz estudos liceais no Liceu D. Filipa de Lencastre. Iniciou-se
na literatura com a publicação de uma obra destinada ao público infanto-juvenil
mas rapidamente se afirmou como poetisa.
Notabilizada através de diversas vertentes da escrita, já
que foi poetisa, dramaturga, romancista, ensaísta, tradutora, jornalista,
guionista e editora, tornou-se conhecida na imprensa escrita e, sobretudo, na
televisão, com o programa Mátria, onde advogou uma forma especial de
feminismo (afastado do conceito politicamente correcto do movimento), o
matricismo, identificador da mulher como arquétipo da liberdade erótica e
passional e fonte matricial da humanidade; mais tarde, à noção
de Pátria e de Mátria acrescenta a de Frátria.
Dotada de invulgar talento oratório e grande coragem
combativa, tomou parte activa nos movimentos de oposição ao Estado Novo, tendo participado no MUD
(Movimento de Unidade Democrática, 1945), no apoio às candidaturas para a
Presidência da República do general Norton
de Matos (1949) e de Humberto
Delgado (1958) e na CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática,
1969). Foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação
da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, considerada ofensiva
dos costumes, (1966) e processada pela responsabilidade editorial das Novas
Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta. Foi responsável pela
coordenação da Editora Arcádia, uma das grandes editoras portuguesas do tempo.
A sua intervenção política pública levou-a ao parlamento,
para onde foi eleita em 1980 nas listas do PPD (Partido Popular
Democrático), passando a independente. Foi autora de polémicas intervenções parlamentares,
das quais ficou célebre, num debate sobre o aborto, em 1982, a réplica satírica
que fez a um deputado do CDS sobre a fertilidade do mesmo.
Fundou em 1971, com Isabel Meireles, Júlia Marenha e Helena
Roseta, o bar Botequim, onde durante as décadas de 1970 e 1980 se
reuniu grande parte da intelectualidade portuguesa. Foi amiga de António Sérgio (esteve associada ao Movimento da
Filosofia Portuguesa), David Mourão-Ferreira ("a irmã que
nunca tive"), José-Augusto França ("a mais linda
mulher de Lisboa"), Luiz
Pacheco ("esta hierofântide
do século XX"), Almada
Negreiros, Mário Cesariny ("era muito mais linda que
a mais bela estátua feminina do Miguel Ângelo"), Ary
dos Santos ("beleza sem costura"), Amália Rodrigues, Fernando
Dacosta, entre muitos outros. Foi uma entusiasmada e grande impulsionadora
pelo aparecimento do espectáculo de café-concerto em Portugal,
na figura do polémico travesti Guida Scarllaty, o actor Carlos
Ferreira, na época um jovem arquitecto de quem era grande amiga. Na sua casa,
foi anfitriã de escritores famosos como Henry
Miller, Graham Greene ou Ionesco.
A 13 de Julho de 1981 foi feita Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da
Espada. Natália Correia recebeu, em 1991, o Grande Prémio de Poesia da
Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Sonetos Românticos. No mesmo ano
a 26 de Novembro foi feita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade.
Natália Correia casou quatro vezes. Após dois primeiros
curtos casamentos, casou em Lisboa a 31 de Julho de 1953 com Alfredo Luís
Machado (1904-1989), a sua grande paixão, bem mais velho do que ela e já viúvo,
casamento este que durou até à morte deste, a 17 de Fevereiro de 1989. (São já
notáveis as cartas de amor da jovem Natália para Alfredo Luís Machado.) Em
1990, tinha Natália 67 anos de idade, celebrou um casamento de conveniência com
o seu colaborador e amigo Dórdio Guimarães.
Na madrugada de 16 de
Março de 1993,
morreu, subitamente, com um ataque
cardíaco, em sua casa, depois de regressada do Botequim. A sua morte
precoce deixou um vazio na cultura portuguesa muito difícil de preencher. Legou
a maioria dos seus bens à Região Autónoma dos Açores, que lhe
dedicou uma exposição permanente na nova Biblioteca Pública de Ponta
Delgada, instituição que tem à sua guarda parte do seu espólio literário
(que partilha com a Biblioteca Nacional de Lisboa) constante de muitos volumes
éditos, inéditos, documentos biográficos, iconografia e correspondência,
incluindo múltiplas obras de arte e a biblioteca privada.
Fonte: Wikipédia –
A enciclopédia livre
Sem comentários:
Enviar um comentário