Vi eu um dia a Morte andar
folgando
Vi eu um dia
a Morte andar folgando
Por um campo
de vivos, que a não viam.
Os velhos,
sem saber o que faziam
A cada passo
nela iam topando.
Na mocidade
os moços confiando,
Ignorantes da
morte, a não temiam.
Todos cegos,
nenhuns se lhe desviam;
Ela a todos
c’o dedo os vai contando.
Então, quis
disparar, e os olhos cerra:
Tirou, e
errou! Eu, vendo seus empregos
Tão sem
ordem, bradei: Tem-te, homicida!
Voltou-se, e
respondeu; Tal vai de guerra!
Se vós todos
andais comigo cegos,
Que esperais
que convosco ande advertida?
(D. Francisco Manuel de Melo - 1608-1666)
D. Francisco Manuel de Melo (Lisboa, 23 de
Novembro de 1608 – 24 de Agosto de 1666) foi
um escritor, político e militar português, ainda que
pertença, de igual modo, à história literária, política e militar
da Espanha. Historiador, pedagogo, moralista, autor teatral, epistológrafo
e poeta, foi representante máximo da literatura barroca peninsular. Dedicou-se
à poesia, ao teatro, à história e à epistolografia. Tendo
publicado cerca de duas dezenas de obras durante a sua vida, foi ainda autor de
outras, publicadas postumamente. Aliou ao estilo e temática barroca (a instabilidade
do mundo e da fortuna, numa visão religiosa) o seu cosmopolitismo e espírito
galante, próprio da aristocracia de onde provinha. Entre suas obras mais
importantes, pode-se destacar o texto moralista da “Carta de Guia de Casados”
ou a peça de teatro “Fidalgo Aprendiz” (que é uma "Farsa", como foi
descrita pelo seu autor desde o início e não um "Auto" como tem vindo
a ser designada por edições recentes).
O tema da morte está diversas vezes presente, como
no soneto “Vi eu um dia a Morte andar
folgando”, onde se reflecte sobre o poder desordenador, caótico e
desequilibrado que a morte impõe ao mundo dos vivos e incautos. O soneto, com a
sua forma limitada a catorze versos, vai ao encontro do poder de síntese
próprio do autor. É frequente um estilo coloquial que se verifica noutros
sonetos, como no “Que vos hei-de mandar de Caparica”, que não é mais que
uma carta de Natal a uma prima, na altura em que esteve preso.
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