Com fúria e raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
(Sophia
de Mello Breyner Andresen – 1919-2004)
Da sua infância e juventude, a autora (Sophia de Mello Breyner Andresen)
recorda sobretudo a importância das casas, lembrança que terá grande impacto na
sua obra, ao descrever as casas e os objectos dentro delas, dos quais se
lembra. Explica isso do seguinte modo: "Tenho muita memória visual e
lembro-me sempre das casas, quarto por quarto, móvel por móvel e lembro-me de
muitas casas que desapareceram da minha vida (…). Eu tento «representar», quer
dizer, «voltar a tornar presentes» as coisas de que gostei e é isso o que se
passa com as casas: quero que a memória delas não vá à deriva, não se
perca" Está
presente em Sophia também uma ideia da poesia como
valor transformador fundamental. A sua produção corresponde a ciclos
específicos, com a culminação da actividade da escrita durante a noite:
"não consigo escrever de manhã, (…) preciso daquela concentração especial
que se vai criando pela noite fora.". A
vivência nocturna da autora é sublinhada em vários poemas ("Noite",
"O luar", "O jardim e a noite", "Noite de Abril",
"Ó noite"). Aceitava a noção de poeta inspirado, afirmava que a sua
poesia lhe acontecia, como a Fernando
Pessoa: "Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema». A minha
maneira de escrever fundamental é muito próxima deste «acontecer». (…)
Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura.
Pensava mesmo que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si
mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam
suspensos imanentes (…). É difícil descrever o fazer de um poema. Há sempre uma
parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não
vejo.".7 A
sua própria vida e as suas próprias lembranças são uma inspiração para a
Autora, pois, como refere Dulce Maria Quintela (1981:112),
ela "fala de si, através da sua poesia".
Sophia de Mello Breyner Andresen fez-se poeta já na sua
infância, quando, tendo apenas três anos, foi ensinada "A Nau Catrineta"
pela sua ama Laura (Quintela, op.cit:112):
"Havia em minha casa uma criada, chamada Laura, de quem
eu gostava muito. Era uma mulher jovem, loira, muito bonita. A Laura ensinou-me
a "Nau Catrineta" porque havia um primo meu mais velho a quem tinham
feito aprender um poema para dizer no Natal e ela não quis que eu ficasse
atrás… Fui um fenómeno, a recitar a "Nau Catrineta", toda. Mas há
mais encontros, encontros fundamentais com a poesia: a recitação da
"Magnífica", nas noites de trovoada, por exemplo. Quando éramos um
pouco mais velhos, tínhamos uma governanta que nessas noites queimava alecrim,
acendia uma vela e rezava. Era um ambiente misto de religião e magia… E de
certa forma nessas noites de temporal nasceram muitas coisas. Inclusivamente, uma
certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da dureza da
vida dos outros, porque essa governanta dizia: «Agora andam os pescadores no
mar, vamos rezar para que eles cheguem a terra» (…)."8
Baseando-nos nas observações de Luísa Pessoa (2006),
desenvolvamos alguns dos tópicos mais relevantes na sua criação literária:
A infância e juventude – constituem para a Autora um espaço
de referência ("O jardim e a casa", Poesia, 1944;
"Casa", Geografia, 1967; "Casa Branca", Poesia,
1944; "Jardim Perdido", Poesia, 1944; "Jardim e a
Noite", Poesia, 1944).
O contacto com a Natureza também marcou
profundamente a sua obra. Era para a Autora um exemplo de liberdade, beleza,
perfeição e de mistério e é largamente citada da sua obra, quer citada pelas
alusões à terra (árvores, pássaros, o luar), quer pelas referências ao mar
(praia, conchas, ondas).
O Mar é um dos conceitos-chave na criação literária de
'Sophia de Mello Breyner Andresen: "Desde a orla do mar/ Onde tudo começou
intacto no primeiro dia de mim".9 O
efeito literário da inspiração no Mar pode se observar em vários poemas, como,
por exemplo, "Homens à beira-mar" ou "Mulheres à
beira-mar". A Autora comenta isso do seguinte modo:
"Esses poemas têm a ver com as manhãs da Granja, com as
manhãs da praia. E também com um quadro de Picasso. Há um quadro de Picasso chamado Mulheres
à beira-mar. Ninguém dirá que a pintura do Picasso e a poesia de Lorca tenham
tido uma enorme influência na minha poesia, sobretudo na época do Coral… E
uma das influências do Picasso em mim foi levar-me a deslocar as imagens."
Outros exemplos em que claramente se percebe o motivo do mar
são: "Mar" em Poesia, 1944; "Inicial" em Dual,
1972; "Praia" em No Tempo dividido; "Praia"
em Coral, 1950; "Açores" em O Nome das Coisas, 1977. Neles
exprime-se a obsessão do mar, da sua beleza, da sua serenidade e dos seus mitos. O Mar
surge aqui como símbolo da dinâmica da vida. Tudo vem dele e tudo a ele
regressa. É o espaço da vida, das transformações e da morte.
A cidade constitui outro motivo frequentemente repetido
na obra de SMB ("Cidade" em Livro Sexto, 1962; "Há Cidades
Acesas", Poesia, 1944; "Cidade" em Livro Sexto, 1962;
"Fúrias", Ilhas, 1989). A cidade é aqui um
espaço negativo. Representa o mundo frio, artificial, hostil e desumanizado, o
contrário da natureza e da segurança.
Outro tópico acentuado com frequência na obra de Sophia
é o tempo: o dividido e o absoluto que se opõem. O primeiro é o tempo da
solidão, medo e mentira, enquanto o tempo absoluto é eterno, une a vida e é o
tempo dos valores morais ("Este é o Tempo", Mar Novo, 1958;
"O Tempo Dividido", No Tempo Dividido, 1954). Segundo Eduardo Prado Coelho, o
tempo dividido é o tempo do exílio da casa, associado com a cidade, porque a
cidade é também feita pelo torcer de tempo, pela degradação.
'Sophia de Mello Breyner Andresen era admiradora
da literatura clássica. Nos seus poemas aparecem frequentemente palavras
de grafia antiga (Eurydice, Delphos, Amphora). O culto pela arte e tradição
próprias da civilização grega são lhe próximos e transparecem pela sua obra
("O Rei de Itaca", O Nome das Coisas, 1977; "Os
Gregos", Dual, 1972; "Exílio", O Nome das Coisas,
1977; "Soneto de Eurydice", No Tempo Dividido, "Crepúsculo
dos Deuses", Geografia; "O Rei de Itaca", O Nome das
Coisas, 1977; "Ressurgiremos", Livro Sexto, 1962).
Além dos aspectos temáticos referidos acima, vários autores
(Pessoa, op.cit:64-71; Quintela, 1981:112-114; Sena, 1988:174; Berrini, 1985)
sublinham a enorme influência de Fernando
Pessoa na obra de 'Sophia de Mello Breyner Andresen. O que os dois
autores têm em comum é: a influência de Platão, o
apelo ao infinito, a memória de infância, o sebastianismo e
o messianismo,
o tom formal que evoca Álvaro de Campos. A figura de Pessoa encontra-se
evocada múltiplas vezes nos poemas de Sophia ("Homenagem a Ricardo
Reis", Dual, 1972; "Cíclades (evocando Fernando
Pessoa)", O Nome das Coisas, 1977).
De modo geral, o universo temático da Autora é abrangente e
pode ser representado pelos seguintes pontos resumidos (Besse, 1990, 11,13; Pessoa, 2006:15):
A busca da justiça, do
equilíbrio, da harmonia e a exigência do moral
Tomada de consciência do tempo em que vivemos
A Natureza e o Mar – espaços eufóricos e referenciais para
qualquer ser humano
O tema da casa
Amor
Vida em oposição à morte
Memória da infância
Valores da antiguidade clássica, naturalismo helénico
Idealismo e individualismo ao
nível psicológico
O poeta como pastor do absoluto
O humanismo cristão
A crença em valores messiânicos e sebastianistas
Separação
Quanto ao estilo de linguagem de 'Sophia de Mello Breyner
Andresen, podemos constatar que, como refere Besse (op.cit: 14), Sophia de Mello
Breyner tem um estilo característico, cujas marcas mais evidentes são: o
valor hierático da palavra, a expressão rigorosa, o apelo à
visão clarificadora, riqueza de símbolos e alegorias, sinestesias e ritmo evocador
de uma dimensão ritual. Nota-se uma "transparência da palavra na sua
relação da linguagem com as coisas, a luminosidade de um mundo onde intelecto e
ritmo se harmonizam na forma melódica, perfeita".
A opinião sobre ela de alguns dos mais importantes críticos
literários portugueses é a mesma: o talento da autora é unanimemente
apreciado. Eduardo Lourenço afirma que a Sophia de Mello
Breyner tem uma sabedoria "mais funda do que o simples saber", que o
seu conhecimento íntimo é imenso e a sua reflexão, por mais profunda que seja,
está exposta numa simplicidade original. Seguem
alguns exemplos de outros estudiosos a comprovar essa opinião:
"A sua sensibilidade de poeta oscila entre o modernismo
de expressão e um classicismo de tom, caracterizado por uma sobriedade
extremamente dominada e por uma lucidez dialéctica que coloca muitas das suas
composições na linha dos nossos melhores clássicos." (Álvaro Manuel
Machado, Quem é Quem na Literatura Portuguesa)
"'Sophia de Mello Breyner Andresen é, quanto a nós, um
caso ímpar na poesia portuguesa, não só pela difusa sedução dos temas ou pelos
rigores da expressão, mas sobretudo por qualquer coisa, anterior a isso tudo,
em que tudo isso se reflecte: uma rara exigência de
essencial-idade". (David Mourão-Ferreira, Vinte Poetas
Contemporâneos)
"A poesia de 'Sophia de Mello Breyner Andresen é (…)
uma das vozes mais nobres da poesia portuguesa do nosso tempo. Entendamos, por
sob a música dos seus versos, um apelo generoso, uma comunhão humana, um calor
de vida, uma franqueza rude no amor, um clamor irredutível de liberdade – aos
quais, como o poeta ensina, devemos erguer-nos sem compromissos nem
vacilações." (Jorge de Sena, "Alguns Poetas de 1938" in
Colóquio Artes e Letras, nº 1, Janeiro de 1959)
Fonte: Wikipédia –
A enciclopédia livre
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